Sempre tive o sonho de correr a São Silvestre, que segundo meu pai,
Flavio Araujo, era um sonho de todos os meus irmãos. Meu pai já havia
completado o percurso por mais de 20 vezes nas décadas de 60, 70 e 80,
porém, amarrado na carroceria de uma camionete, narrando a prova pela
Radio Bandeirantes, sempre na passagem de ano. Então, todo ano novo uma
coisa era certa, meu pai só chegaria depois que a prova terminasse.
Talvez daí viesse a nossa vontade de participar da prova, para estar
junto a ele naquele momento.
O tempo passou, mas o sonho não, e virou até motivo de graça, todo
ano, encerradas as inscrições, eu sempre brincava: “Poxa, perdi a
inscrição, mas ano que vem estarei lá!”.
Com exceção da época do Tiro de Guerra, em 1988, sempre fui um cara
sedentário, minhas sessões de tentativa de treino mal chegavam a uma
semana. Até que um dia, o Matheus Henrique, personal trainner e
colunista do Ribeirão Preto Online, veio com a proposta de pegar alguém
como eu, e em 6 meses deixar apto a correr a São Silvestre. Me colocaram
nessa como piada, mal sabiam da vontade que eu tinha de participar
dessa corrida: Topei na hora.
Marcamos o início do treino, e logo de cara, no dia 26 de julho, o
Matheus me colocou na “Corrida da Solidariedade”, 8 km nas ruas do
Parque Ribeirão. Nunca havia corrido ao menos a metade da distância, mas
como ele me deixou bem à vontade para correr no meu ritmo, completamos a
prova em 1 hora.
Me dediquei bastante aos treinos, puxados para quem nunca havia
treinado antes, a cada dia um novo desafio era conquistado, e fui
sentindo a melhora a cada dia. Aos poucos fui me adaptando ao melhor
horário de treinos, e a próxima corrida já passava a criar expectativa.
Foi assim na corrida de Pitangueiras, no dia 16 agosto, 7 km completados
em 39 minutos. Uma melhora considerável em apenas 20 dias de treino.
A dedicação nos treinos foi fator determinante para os resultados,
claro que com todo apoio do treinador e dos professores da Equilíbrio,
que além de me treinar, incentivavam a cada dia, exigindo o máximo da
minha performance, sem falar dos amigos que vamos conhecendo e fazendo
nessa jornada, cada nova conquista minha passa a ser uma conquista de
todos.
No final da primeira planilha, em setembro, veio à primeira contusão,
o treino passou para uma etapa mais pesada, e o joelho passou a doer.
Prontamente o Matheus mudou a carga, e o tratamento foi rápido, tanto
que no dia 18 de outubro estávamos em São José dos Campos, para Corrida
da Longevidade. Percurso de 6 km no lindo Parque da Cidade. O que era
para ser uma prova normal, foi um cross-country, tamanha era lama no
percurso, que completamos em 33m58s. Mais uma etapa superada.
Correr passou a fazer parte do meu dia a dia, e falar da tão esperada
São Silvestre então, nem se fala, ninguém agüentava mais me ouvir falar
na corrida. Os treinos passaram a ser mais longos, a musculação foi
acrescentada para fortalecimento e proteção das articulações. Um dia sem
correr, era como ter passado um dia sem beber água, e a disposição que o
treinamento trás, reflete em nossas outras atividades. A melhora física
é visível.
O último treinamento foi um desafio de 13 km, no dia 20 de dezembro,
entre Ribeirão e Bonfim Paulista, e foi completado com tranqüilidade. Eu
já estava pronto para a tão esperada São Silvestre. Fui tranqüilo para o
litoral, aguardar o dia 31, com uma planilha simples para esses dias
finais, somente para manutenção. Era só contar os dias e correr pro
abraço.
Mas, se não tiver emoção, não tem graça, e mais um desafio apareceu
de última hora. Num mergulho no Guarujá, no dia 26, sábado, a seis dias
da prova, pisei num ouriço. Na hora não foi nada, os espinhos saíram
todos e fiquei mais preocupado com uma pancada que havia dado no
tornozelo. Porém, no dia seguinte, meu pé começou a inchar, não havia
dor, só inchaço e vermelhidão. Fui ao hospital, e o médico diagnosticou
como reação ao veneno do ouriço, passou antibiótico, antiinflamatório e
antialérgico, e que fosse feita compressas de água quente, porém ele
avaliou em pelo menos uma semana a recuperação do inchaço. No dia 27 meu
pé estava ainda pior, a São Silvestre, que estava tão perto, ficou
distante. Desanimei. Por telefone, o Matheus, com palavras de incentivo,
mandou que colocasse o pé na água quente, o tão quente fosse
suportável. E assim o fiz, troquei o chinelo, por um balde, e
intensifiquei o tratamento, mas já estava descrente da possibilidade de
correr, apesar de que, mesmo que eu não fosse a prova, uma certeza eu já
tinha: Eu estava apto a completar os 15 km da São Silvestre.
No dia 29, o pé melhorou um pouco, mas ainda era pouco. Subi para São
Paulo, peguei nosso Kit da Corrida (meu e do Matheus) e intensifiquei o
tratamento na banheira do Hotel em São José dos Campos. Restavam-me
dois dias, mas apenas no dia 31 meu pé amanheceu totalmente desinchado.
Agora era só comigo, e era difícil segurar a ansiedade. Almoçamos e
seguimos para São Paulo.
Às 15 horas eu estava na Paulista, junto com a Equipe Equilíbrio, meu
irmão Helder e meu filho João Paulo na torcida. Agora não tinha mais
volta, a alegria e vibração da prova são contagiantes, e tudo é festa. E
ali conhecemos personagens da São Silvestre, como o Sr. Mota, figura
que já participou de 54 edições da prova. Sr. Ângelo, meu amigo e
companheiro de treinamento, e o Matheus registraram tudo que puderam.
Exatamente as 16h42 soa a corneta, e a prova começa, pelo menos para o
pelotão de Elite e os Quenianos voadores. Para nós ainda levaria 20
minutos para chegarmos no ponto de partida, tamanho é a quantidade de
atletas a nossa volta: 22 mil corredores.
A descida da Consolação é tranqüila, e aos poucos eu, o Matheus e o
Sr. Ângelo, pegamos o ritmo, aquecendo. O primeiro e o segundo
quilometro são completados com tranqüilidade. Passamos pela Praça da
República, e depois do terceiro quilometro chegamos ao cruzamento mais
famoso da capital, Ipiranga com São João.
O incentivo do público é total, inclusive gritando o nome dos
corredores, que está estampado na numeração das camisas, parece até que
temos torcida pessoal.
No minhocão atingimos 1/3 da prova, e estávamos num ritmo agradável,
minha meta era de terminar bem a corrida, pra sair bonito na foto.
Depois do Minhocão nas ruas próximas ao Memorial da América Latina um
pequeno deslize. Os moradores jogavam água nos corredores, e acabei
encharcando meu tênis, o que me custou uma pequena bolha no pé no
restante do percurso, mas nada que atrapalhasse, nem dei bola pra ela.
Na Avenida Rudge Ramos vieram os primeiros sinais de fadiga, a 6km do final da prova.
Mas ao mesmo tempo, a força necessária para se chegar ao fim vem
junto dos gritos da torcida, ou mesmo ao ultrapassar um garçom, vestido a
caráter, e com copos na bandeja.
A cada placa de distância percorrida, vem a sensação de que o fim
está próximo. Na Avenida Rio Branco. O km 10. Faltam cinco. Passado o
Largo do Paissandu, entramos no Viaduto do Chá e mal dava para ver o
Teatro Municipal em obras. Em meio a uma série de rampas, chegamos ao
Largo do São Francisco, aonde uma corredora começa a entoar o canto:
“Onde é que mora a amizade
onde é que mora a alegria
no Largo de São Francisco
na Velha Academia!”
Outro corredor começa a acompanhar o verso, e como não sei a letra,
marco o ritmo com palmas, enquanto passamos pela imponente Faculdade de
Direito, para logo em frente, no Km 13 chegarmos à temida Brigadeiro.
Alguns corredores se felicitam por estar na reta final da prova. Meus
companheiros já haviam ficado para trás desde a Rio Branco, o Matheus
dando forças ao Sr. Ângelo que teve seu treinamento comprometido por uma
série de contusões, e sentia isso naquele momento. Então era eu e a
Brigadeiro, e assim foi, subi no pique, e quando o cansaço batia, eu
pensava em tudo que passei para estar ali naquele momento, procurava
alguém num bom ritmo e seguia a passos firmes com vontade de chegar.
Quando cheguei na esquina da Paulista, a alegria extravasou, entrei a
mil por hora, ultrapassando quem estava a frente. Vi meu filho João
Paulo na grade e comemorei com os braços ao alto. Meu irmão Helder
gritou e passei pela chegada fazendo aviãozinho. O relógio marcava
02h03m51s de tempo bruto. Com 1h46m12s eu conquistei a São Silvestre.
Dividi minha alegria com outros anônimos, que como eu, completavam a
prova, felizes. Recebi minha medalha para logo colocá-la no peito, cheio
de orgulho.
Agora, meio que parafraseando o poeta Gonçalves Dias em I-Juca
Pirama, com o seu “Meninos, eu vi”, posso dizer: Meninos, eu corri.
Publicado originalmente no Ribeirão Preto Online
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